Gramaticalmente, “moda” é uma palavra feminina. Historicamente, também foi. Nas milhares de páginas da história da moda, os olhares sempre foram mais magnetizados pela silhueta feminina, trabalhada com as maiores fantasias estéticas em ateliês e oficinas, com vestidos de haute couture, sapatos luxuosos e looks de prêt-à-porter altamente disputados. Mas “moda” também pode ser uma palavra masculina.
Por muito tempo, o alvo da moda foram as mulheres. Como diz o antropólogo Gilberto Freyre em Modos de homem & modas de mulher (Editora Record, 1987): “Muito se tem escrito sobre o assunto complexo e fascinante que é moda, associando-se sobretudo ao que ele sugere de mais psicologicamente atraente: a moda como uma expressão ou como um complemento de beleza, de elegância, de físico, de característico antropológico, de personalidade, mais de mulher do que de homem.”
Uma questão de honra
Terno, um clássico da moda masculina.
Nos séculos 19 e 20, a divisão era clara: “modos” eram assunto de homem; “modas”, de mulher. Isso se focarmos apenas o homem comum e não levar em conta, por exemplo, os dândis europeus, os reis franceses de outros séculos e assim por diante. Enquanto as mulheres renovavam o guarda-roupa a cada estação, os homens passavam anos com o mesmo figurino: peças sóbrias, cores escuras, sapatos lustrados, abdicando de detalhes como estampas e adereços – as “frescurinhas” adoradas pelas mulheres.
Segundo a filósofa e crítica literária Gilda de Mello e Souza, a moda masculina do século 19 era quase um “uniforme”: Para o dia, um terno e um par de sapatos em bom estado. Para a noite, o tradicional smoking. Nada mais clássico, mas, ao mesmo tempo, nada mais engessado e previsível.
O visual era elegante, mas demasiadamente discreto, pois queria apenas firmar a posição do homem na sociedade. Na época, mais do que a beleza e a elegância, estavam em questão o poder e a honra do homem. Era uma questão de classe. Social.
Tempos de rebeldia
Jimmy Hendrix, um ícone de Woodstock
A partir da década de 1960 e especialmente na década de 1970, as transformações na moda masculina se tornaram mais nítidas. Enquanto fervilhavam as inovações artísticas, homens e mulheres passaram a libertar mais os corpos para a vaidade, o sex appeal e um feeling mais fashion.
Eram os tempos de Woodstock, da liberação da sexualidade, dos manifestos políticos mundo afora, das barricadas parisienses no Quartier Latin, da cultura efervescente do rock ‘n roll.
Foram tempos realmente revolucionários para os costumes tradicionais, que começariam a morrer na década de 1950, com Marlon Brando e James Dean apostando na dupla jeans+camiseta. Novos tempos, um novo homem por vir.
Um gentleman chic
Com o passar do tempo, os homens passaram a lidar não só com os “modos” (a etiqueta urbana, o status na sociedade, a solenidade nas festas, isto é, o perfil do “gentleman”) mas também com as “modas”. A indústria se voltava para a moda masculina, com coleções, desfiles e editoriais de moda produzidos na medida para atrair os homens, algo inédito até então. Na segunda metade do século 20, o homem se torna um novo público-alvo para a artilharia fashion. A moda passa a simbolizar um estilo de vida mais sofisticado para o homem moderno.
"The One Gentleman", perfume sublime de Dolce & Gabbana.
De 1960/1970 em diante, os homens passaram a adotar peças com cores mais fortes e de estilo mais casual. O flerte entre os clássicos e um estilo informal se torna bem-vindo, ampliando o armário deles com diversas cortes e modelagens para camisas pólo, jeans, paletó, mocassins, sapatos de camurça, cintos de couro e itens afins. Nessa transformação, o antropólogo Gilberto Freyre vê um novo comportamento, com mais liberdades para se vestir na sociedade. É o momento perfeito para começar a inovar, uma das premissas mais importantes para o triunfo vanguardista da moda.
Já no século 21, os homens ampliam seus domínios nessa área, começam a se interessar pelo assunto a ponto de ousarem mais (as unhas pintadas e as sobrancelhas feitas dos metrossexuais se encaixam aí também). Para os mais resistentes, surgem os manuais de estilo, caso de Chic Homem (Editora Senac, 1998), em que a autora, a stylist Glória Kalil afirma: “Moda é assunto de homem, sim senhor”. Assim, os limites imaginários entre os “modos de homem” e as “modas de mulher” se dissipam trazendo liberdade à forma como os homens se vestem. O melhor? O homem contemporâneo pode continuar um perfeito gentleman, mas chic.
Eles por elas, elas por eles
As mulheres roubaram várias peças do closet masculino. No início do século 20, o frisson causado pelos esportes ao ar livre levou homens e mulheres a usar trajes mais “masculinos”, mais práticos e confortáveis para os movimentos do corpo.
Smoking feminíssimo de Yves Saint Laurent.
Na década de 1950, as mulheres se apoderaram dos jeans. Depois dos paletós, coletes e jaquetas. Em 1966, o estilista Yves Saint Laurent presentearia as mulheres com o smoking, um marco na história da moda, revisitado várias vezes por estilistas no mundo todo. Em 1982, o corte reto das calças do terno masculino ganha o closet delas. Enquanto isso, os homens conquistavam espaço na moda, com desfiles e editorais voltados para eles.
Tais transformações são altamente simbólicas, pois refletem a discussão sobre os “papéis” masculinos e femininos na sociedade. Se antes as mulheres ficavam em casa, entre pérolas e jantares, depois da Segunda Guerra Mundial, entram com força no mercado de trabalho (o que se acentuaria nos anos 1980 e acabaria aparecendo nas inesquecíveis ombreiras, símbolo do espaço conquistado pelas mulheres). Por outro lado, se antes os homens eram respeitados pela extrema formalidade no vestir, hoje se sentem mais à vontade para ousar, com looks casuais.
Na dianteira das discussões sobre os novos papéis, talvez a moda desponte como espaço privilegiado, aberto para a vanguarda e para o lúdico, como mostram as capas das revistas Candy e Vogue Japan:
O ator James Franco à esquerda, vestido de mulher para a revista Candy. Lady Gaga à direita, vestida de homem para a Vogue Japan.
Atualmente, a principal novidade é que os closets masculinos e femininos podem flertar. Brincar com as peças (“tradicionalmente” consideradas para eles ou para elas), mesclar estilos (vestidos superfemininos com trench-coats com corte reto e masculino para elas; jeans clássicos, camisetas leves com um quê de transparência e paletós coloridos para eles), abusar das possibilidades com a paleta de cores (diversos desfiles podem desafiar os padrões mais conservadores: quem disse que o rosa é só para meninas?), desconstruir clássicos e inovar (o estilo romântico pode ser militarizado, o vintage pode ser contemporâneo, o navy pode dialogar com o hippie, o casual chic pode ser mais sexy, tanto para eles quanto para elas) e assim por diante.
Desfiles de Alexandre Herchcovitch: smoking para elas, rosa para eles.
Os elementos masculinos podem aderir às curvas femininas com a dose certa de testosterona, com blazers e smokings, por exemplo. Por sua vez, os elementos femininos adicionam ares mais delicados aos corpos másculos, principalmente com as cores e os detalhes, como um corte diferenciado, um tecido mais fino e uma silhueta mais justinha. Aliás, quem imaginava que um dia os homens ousariam experimentar um jeans skinny?
Certa vez, o estilista Alexandre Herchcovitch declarou ser a favor da moda “unissex”, como uma alternativa para experimentar as possibilidades criativas no intercâmbio cultural entre os universos masculino e feminino. Faz sentido, uma vez que a versatilidade da moda unissex conquista espaço em uma sociedade cansada do estilo rococó e suas saias bufantes e fitas de cetim, em busca de modernidade e, principalmente, liberdade.
Tendências passaram e novas virão, mas uma coisa é certa: a moda é assunto de homem, sim, senhor.
Fonte: ModaSpot.com / Por: Juliana Sayuri
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